Continuo a mesma. Continuo no
mesmo endereço, desde que nasci quase. Continuo com as mesmas árvores de folhas
sempre verdes na calçada e as páginas do velho diário na gaveta. Continuo na
mesma casa, que mais parece um bosque e um quarto que mais parece um labirinto
de mim. Continuo com a mesma janela que dorme aberta. Continuo com o mesmo
nome, o mesmo sobrenome, RG, CPF e Título de Eleitor. Continuo com o mesmo celular,
o mesmo número de sapato. Continuo com o mesmo jeito direto que assusta algumas
pessoas. Continuo a mesma boba que sorri por nada. Que faz bico quando chora.
Continuo com o mesmo jeito nada tímido e meio tímido de falar com as pessoas.
Continuo com a mesma cautela. Com o mistério que nem sempre é segredo. Continuo
com um exagero abusado e um drama para achar graça. Continuo falando bobagens.
Continuo acreditando nos amores. Continuo quebrando a cara. Continuo brincando
de ser feliz. Continuo eternizando letras. Continuo a ser loucamente apaixonada
pela lua cheia. Continuo com minhas insônias ou sono demais. Continuo a ter que
me cobrir da cintura até os joelhos, mesmo que o calor seja imenso, ou então
não durmo. Continuo com minhas defesas, medos, desesperos. Continuo vivendo
muito para dentro. Continuo sem paciência pra fazer social. Vez ou outra dou
uma de desentendida. Continuo crítica, principalmente comigo mesma. Continuo
azeda, mas muito doce quando doce. Continuo do contra. Continuo tomando remédio
pra dor nas costas e viro a pessoa mais sonolenta do mundo sob o efeito dessa
droga. Continuo séria. Continuo sorriso. Continuo com o cotovelo direito me
perturbando. Continuo a fazer telefonemas de carinho ali na varanda, olhando
para o céu e poemas de amor, olhando pra ele. Continuo viciada em doces e a
achar "Lisbela" o melhor filme. Continuo a reclamar do calor. E se
faz frio, reclamo do frio. Continuo a preferir o inverno. Continuo fã de
sorvete com farinha láctea e leite condensado. Continuo a me apaixonar todos os
dias. Continuo a sofrer para pisar no chão e deixar a fantasia de lado.
Continuo descaradamente sincera e franca. Continuo com umas coragens insanas.
Continuo a irmã mais velha, não importa quanto os meus irmãos já estejam
adultos. Continuo a perder a conta de quantos sonhos tenho. Continuo sendo
várias, depende de quem me chama. Continuo brigando pelo meu lugar ao sol. Com
quem quer que seja, não importa o preço. Continuo louca por abraços. Continuo a
ouvir as músicas de Nando Reis, Caetano e Gadú incansavelmente. Continuo a
sorrir dizendo que não tem nada a ver quando algo não me agrada. Continuo a
fingir que não tenho medo de avião. Continuo a pensar poesia dentro do carro.
Continuo preferindo andar na janela. Continuo a me preocupar com as revoltas
naturais do mundo. Continuo com o mesmo perfume. Continuo sedentária, apesar
das promessas. Continuo a trocar cinema por filme no sofá debaixo das cobertas,
com pipoca e amor. Continuo lendo muito, mas não tanto quanto gostaria.
Continuo a cobrir meu corpo inteiro quando durmo, ou pelo menos os pés.
Continuo odiando filmes de terror e adorando comédias românticas bem melosas.
Continuo obviamente inocente para as maldades do mundo. E chata. E teimosa. E
arrogante. Continuo vivendo no mundo da lua, mas obrigada a pisar os terrenos
da realidade cruel. Continuo calada quando muita gente fala ao mesmo tempo.
Continuo essencialmente MPB e Bossa Nova. Continuo sempre com um trident de
menta na bolsa. Continuo a escrever cartas que não mando. E-mails quilométricos
pra mim mesma no futuro. Continuo a achar estranho unhas dos pés pintadas de
vermelho, mas continuo pintando. Continuo a tomar banho fervendo, mesmo no
verão. Continuo a escovar os dentes e andar pela casa toda enquanto isso.
Continuo com a letra desenhada e meio ilegível, apesar de achá-la linda.
Continuo a procurar erros de português em todos os cantos. Continuo a me sentir
nua sem brincos. Continuo sarcástica. Continuo ótima ouvinte. Continuo sensível
demais. Continuo insensível demais. Continuo achando domingo o melhor dia da
semana. Continuo acumulando leituras indicadas. Continuo a achar que chuva
forte é aplauso. Continuo com inveja das pessoas que gostam e aguentam horas a
fio em festas e boates, eu continuo caseira e continuo amando leite gelado.
Continuo a ganhar o dia quando me dizem que andei emagrecendo. Continuo com
meus cachos indefinidos. Continuo a não usar batom. Continuo a achar nos livros
uma saída. Continuo preferindo a calça jeans, mas visto mais roupa social
agora, por exigência da sociedade e da profissão. Continuo clichê. E me
rendendo a algumas convenções sociais. Continuo a achar melancia a fruta mais
gostosa desse mundo. Continuo apaixonada por flores. Continuo achando que
preciso usar mais meus óculos. Continuo com preconceito musical, mesmo sendo
bastante eclética. Continuo com preguiça de gente. Continuo com saudades
imensas de um lugar que ainda não conheço. Continuo a sorrir quando vejo fotos
antigas que trazem de volta momentos bons que não voltam. Continuo a sentar na
grama. Continuo a me tranquilizar quando a chuva cai lá fora. Continuo na minha
sozinhez, mesmo acompanhada. Continuo a brigar com minha escolha profissional e
a amar o que faço e onde trabalho, mas ainda hei de ser rica e bem-sucedida
longe dali. Continuo a amar loucamente minha filha e meu filho que ainda vão
nascer um dia. Continuo a querer ser pedida em casamento todos os dias.
Continuo a achar que catchup, chocolate e sushi são invenções muito dignas.
Continuo espiritualizada. Continuo a ver a presença da força divina em tudo que
vivencio, de uma forma ou de outra. Continuo a não ser mulherzinha e a adorar
coisas de mulherzinha. Continuo tendo amigas distantes. Continuo contraditória.
Continuo guardando tudo pra mim. Continuo a ter crises de enxaqueca durante
implosões. Continuo a tirar o esmalte com os dentes deixando o chão cheio de
pontinhos vermelhos, quando ansiosa. Ando mais solta. Continuo me sentindo
presa. Continuo amante de praias. Continuo me sentindo muito bem em frente ao
mar, continuo gostando de olhar pro mar como gosto de pouca coisa nessa vida.
Continuo fazendo planos de viajar muito. Continuo achando que sair sem destino
certo e sem hora pra voltar o melhor programa do mundo. Continuo descabelada
quando acordo. Continuo difícil de entender. E fácil de dobrar. Ou o contrário.
Continuo dormindo com o MP3 ligado e agarrada ao travesseiro. Ou a tv ligada,
pra espantar o medo do escuro. Continuo a contar meus amigos nos dedos da mão.
Continuo com doses de melancolia. Continuo a voar para dentro das pessoas
quando vejo pedacinhos meus por lá. Continuo sendo apaixonada por simplicidade
e tendo uma fé inabalável. Continuo a chorar de repente, e assim ver o choro me
aliviar. E depois planto sorrisos. Continuo a me gastar de maneiras lindas. E a
contabilizar meus pedaços assim, todo dia e a cada fim de mês. No mundo que eu
escolhi para meu. Que me recebeu, com suas dádivas e dores. E toda essa
promessa de vida. E vários corações.
Emília Lima, Adaptado.