quinta-feira, 18 de agosto de 2011

PEDRA ROLANTE




“Pedra que muito rola não cria musgo” – dizia minha avó quando falava de um sobrinho, Francisco. Ninguém nunca sabia direito onde ele andava: podia ser Porto Alegre, Rio, São Paulo, Paris ou Alexandria. Não é jeito de dizer, não. Ele passou mesmo vários anos no Egito. O Francisco era um exemplo perfeito do que um bom rapaz não deve nunca fazer: andar por aí assim, mudando de cidade, de trabalho, de vida, com tanta facilidade como quem muda de camisa. Pedra que se preza, para minha avó, devia ficar parada e quietinha no seu lugar, criando embaixo aquela camada grossa de musgo verdinho.

Bom, uns anos depois, já na estrada, conheci o Francisco e achei ele ótimo. Tinha visto uma porção de lugares, conhecido um monte de gente, vivido e sentido coisas que a maioria das pessoas só imagina e não tem coragem de viver. Fiquei encantado: ele era uma pessoa larga. Largueza, para mim, é qualidade muito importante nas pessoas. Foi então que entendi melhor porque sempre tinha achado musgo uma coisa muito chata.

As pessoas vivem me perguntando: “Mas, afinal, onde é mesmo que você está morando?” Nem sempre sei responder. Pode ser aqui, ali, ou um pouco aqui, outro ali. Outro dia alguém se queixou que só de endereços meus tinha umas duas páginas ocupadas (e riscadas) na cadernetinha. Até pouco tempo atrás, confesso, eu mesmo ficava angustiado com essa inquietação toda. Agora estou mais acostumado. Tem coisas da gente que não são defeito nem erro: são só jeito da gente ser. O negócio é acostumar com isso e não sofrer. Aliás, o melhor jeito, em relação a qualquer coisa, é sofrer o mínimo possível. Aquilo que os americanos chamam de relax and enjoy – mais ou menos “relaxe e curta”.

Não sei dizer mais quantas vezes mudei de casa e de cidade. Fui, por exemplo, de Santiago, no interior do Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, de lá para São Paulo, depois Campinas, Rio de Janeiro, um tempinho em Florianópolis, na Bahia, em Paris, em Londres, Estocolmo, mais um pouquinho no Rio, e por aí vai. Só em São Paulo já morei quatro vezes, de ir embora jurando nunca mais voltar, e voltando sempre. Só em Sampa, já passei pelo Jardim América, pela Bela Vista, Vila Madalena, Jardim Paulistano, Pinheiros, Sumaré, Centro da cidade – agora estou num lugar entre o Ibirapuera e Vila Nova Conceição, que ainda não consegui descobrir o nome. Sei que tem uma feira bem na minha rua, às terças-feiras.. Estou achando um grande barato ter, pela primeira vez na vida, uma feira aqui na porta de casa. Mas não sei até quando vou achar isso.

Minto. Sei, sim. Não é de repente, é mais aos pouquinhos que acontece. Difícil explicar, mas vai dando uma coisa de você não ver mais direito nem as coisas nem as pessoas que estão à sua volta. Você vai acostumando com elas, assim como acostuma com uma cadeira, uma mesa, um fogão. Quando tudo começa a ficar igual todos os dias e você, sem perceber, começa a se movimentar como quem liga o automático e, feito robô, apenas faz coisas, sem sentir o que está fazendo – bem, para mim é porque está na hora de dar o fora. Aí a gente muda. Se não dá para mudar de cidade, muda de casa, muda de rua, de bairro (cá entre nós: massa mesmo seria poder mudar de planeta). Não há nada mais estimulante do que ver ruas e pessoas pela primeira vez. Você tem que fazer um superexercício para conseguir descobrir os jeitos particulares delas se comunicarem – sim, porque tudo isso tem um jeitinho particular. Você é novo. A maioria das pessoas que conheço vive muito desatenta de estar vivendo: elas parecem tão acostumadas com as coisas que estão em volta que é como se estivessem dormindo.

Não digo que todo mundo deva fazer a mesma coisa, e que isso é o certo. Na minha cabeça, certo é tudo aquilo que dá prazer da gente fazer, desde – claro – que não prejudique ninguém. Depois, também acho que para acordar dessa espécie de sono limoso tem muito jeitos. Pode ser ler um livro ou ver um filme provocante, de vez em quando. Num fim de semana, ir a um bar ou a um bairro onde a gente nunca foi antes. Ou bater um bom papo, daqueles verdadeiros, com uma pessoa nova. O que não pode é começar a achar tudo igual, porque aí a criatura vai engordando por dentro e criando aquele tipo de barriga que eu chamo de “barriga mental”. Umas gordurinhas no cérebro que deixam o pensamento lerdo e tiram o prazer de qualquer coisa.

Claro que viver assim, pulando de galho em galho, também tem suas desvantagens. O que se perde de correspondência, por exemplo, é um absurdo. E tem gente maravilhosa que, de repente, vai ficando longe, difícil de ver – e aí dança. Mas também acho que aquilo que é bom, e de verdade, e forte, e importante – coisa ou pessoa – na sua vida, isso não se perde. E aí lembro de Guimarães Rosa, quando dizia que “o que tem de ser tem muita força”. A gente não tem é que se assustar com as distâncias e os afastamentos que pintam. Mas, vantagens? Ah, isso também tem. A melhor delas é conhecer gente. Não tem coisa melhor (nem pior) do que gente. E, na minha opinião, não é plantado no mesmo lugar, caminhando sempre pelas mesmas ruas, repetindo ano após ano os mesmos programas, que você vai conhecer pessoas novas.

Se fico por aqui? Vou ficando. A feira na porta de casa me encanta, o dono do bar da esquina já começou a me cumprimentar. Ontem mesmo comecei um trabalho novo, e a casa recente está pegando o jeito que gosto. Mas quando vejo no mapa uma ilha chamada Java, com o porto de Surabaya, nas bandas da Ásia – que dá uma vontade de ir pra lá, ah, isso dá. Questão de paciência. Pelo menos até o dia que eu acordar de manhã e perceber aquela camadinha de verde musguento avançando. Porque, no que depender de mim, e para desgosto de minha avó, enquanto tiver saúde vou rolando até encontrar qualquer coisa (ou pessoa) tão fantástica que me dê vontade de ficar ali para sempre. Cá entre nós, se for só a morte, também não me importo nem um pouco.

Do sempre nosso, Caio Fernando Abreu.

Extraído do blog Caio F Abreu: http://caiofcaio.blogspot.com/

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SUGESTÕES PARA PASSAR AGOSTO (e todos os meses de sua vida)

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro- e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.
Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir,dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus,fica a suspeita de sinistros angúrios, premonições.Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos- ou precauções-úteis a todos. O mais difícil:evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade...Esquecê-lo tão completamente quanto possível(santo ZAP!):FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu- sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros,juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se , e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques-tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire , a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas- coisas assim são eficientíssimas, pouco me
importa ser acusado de alienação.
É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.
Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter de mais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.

Do sempre nosso, Caio Fernando Abreu.

(crônica escrita em AGOSTO de 1995, O ESTADO DE SÃO PAULO)